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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Publicações clássicas na imunologia: a descoberta do rearranjo somático nos genes de imunoglobulina faz 35 anos

Juan J. Lafaille
New York University School of Medicine
Começo escrevendo que não pratico religião nenhuma.  Entretanto, quando visito uma das grandes catedrais, ou quando estou ao lado de uma grande obra de arte, o sentimento de êxtase e reverência é quase religioso.  O idioma inglês tem uma boa palavra para descrever isso que é “awe”.  É uma emoção forte, quase paralisante.  Para mim, abrir o paper “Evidence for somatic recombination of Immunoglobulin genes “ de autoria de Hozumi e Tonegawa e publicado no PNAS em 1976 evoca um sentimento parecido ao de entrar numa catedral: uma reverência quase religiosa.  Trata-se de uma obra que revolucionou a imunologia e a biologia em geral.  Embora não seja um paper perfeito, poucos papers na história tiveram a capacidade de direcionar a imunologia do jeito que este paper conseguiu.  
O assunto abordado pelo paper é a geração de diversidade dos anticorpos (imunoglobulinas),e a questão específica é apresentada como um dilema na introdução: tem evidência de uma grande multiplicidade de regiões variáveis e tem evidência de que há apenas uma região constante, como é que isso se resolve para que o RNA mensageiro tenha apenas uma região variável justaposta a única região constante?  Tonegawa propõe que em teoria é possível a justaposição ao nível de RNA, ou ao nível de rearranjo do DNA.  Obviamente, o paper demonstra o segundo, como já veremos.  Notem que a questão não foi apresentada de forma muito ampla ou complexa.  Questões muito amplas geralmente não conseguem ser resolvidas claramente num experimento.  O grande talento do Tonegawa, com ajuda do Charlie Steinberg e outros, foi transformar uma pergunta enorme sobre a geração da diversidade numa série de perguntas menores que podiam ser respondidas com experimentos bem controlados. O Tonegawa sabia perfeitamente que ele podia distinguir entre um mecanismo ao nível de RNA e um mecanismo ao nível de DNA, e apresentou a questão de forma bastante restrita.  Porém, 35 anos mais tarde sabemos que essa questão apresentada de forma restrita abriu a porta para uma revolução conceitual de grande amplitude. 
O paper foi comunicado ao PNAS no 2 de Julho de 1976 pelo Niels Jerne, o chefe do Tonegawa no instituto de Imunologia da Basiléia.   A Figura 2 é aquela para a posteridade.  Nela, o DNA de embrião de camundongo BALB/c (representando uma amostra sem rearranjo) e DNA do mieloma MOPC321 derivado da cepa BALB/c (a amostra que poderia ter tido rearranjo no DNA) foram digeridos com a enzima de restrição BamHI, e o DNA digerido foi corrido num gel de agarose.  Depois do DNA ter separado no gel baseado no tamanho dos fragmentos, o gel foi cortado em pequenos pedaços, o DNA foi extraído de cada pedaço de gel e precipitado, e cada fração foi hibridizada com uma sonda radioativa feita com RNA altamente enriquecido em mRNA da cadeia leve kapa do MOPC321.  Se tiver rearranjo do DNA, os fragmentos de DNA contendo o gene da cadeia leve kapa no embrião e no mieloma iriam ser de tamanho diferente, e a medida de radioatividade em cada fração do gel deveria mostrar a diferença.  O resultado não poderia ter sido mais claro: a diferença na localização das bandas radiativas contendo a cadeia kapa entre as amostras de embrião e mieloma não deixa dúvidas que houve algum tipo de rearranjo ao nível do DNA.     
O Tonegawa fez a maior parte dos experimentos antes da publicação em 1975 do elegante método do Edwin Southern, que consiste na transferência do DNA do gel inteiro a uma membrana, seguida de hibridização com sonda marcada.  O que o Tonegawa fez em centenas de hibridizações em separado (só na figura 2 tem 120), o método do Southern permite fazer numa hibridização só.  O Tonegawa me falou sobre não ter descoberto o método do Southern com certa frustração, já que teria sido muito mais fácil fazer o que ele fez.  Mas, 35 anos depois, acho que a história fica mais bonita com as centenas de hibridizações.  O Tonegawa sabia que a solução que ele (e muitos outros) procuravam desesperadamente estava nesse gel do DNA digerido com BamHI, e se ele tivesse que tirar o DNA com os dentes, ele ia tirar.  A “garra” suprema do Tonegawa é o que mostra o experimento feito com centenas de tubinhos em separado.  Se tivesse sido fácil, outros teriam feito.
O paper de 1976 representa um passo gigantesco, ao identificar o rearranjo do DNA como método envolvido na geração da diversidade de anticorpos.  Os cinco anos que vieram depois foram de loucura total.  A competição ficou muito forte e todas a descobertas importantes que aconteceram nesse período foram publicadas ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, por Tonegawa e algum outro grupo, que às vezes era o Phil Leder, às vezes o Lee Hood, às vezes outros.  Assim veio a descoberta do segmento J (Joining) que permitiu o conceito da diversidade combinatorial (segmentos V diferentes podiam recombinar com segmentos J diferentes, com uma diversidade potencial igual a multiplicação do número  de segmentos V pelo número de segmentos J).  O conceito foi logo ampliado pela descoberta do segmento D (Diversity) no gene que codifica a cadeia pesada, mas não nos genes que codificam as duas cadeias leves.  Chegaram a identificação das seqüências que delimitavam os segmentos a serem recombinados, o heptâmero e o nonâmero, separados por um espaçador de 12 pares de base de um lado e 23 pares de base do outro lado.  Interessante que até hoje não se entende bem a base enzimática da regra 12/23, o que se sabe da reação de recombinação ainda não explicou a seleção de segmentos a serem recombinados, fora a necessidade de serem abertos para transcrição como mecanismo de acessibilidade.  Em 1981, havia se avançado tudo isso, começando 1976 sem que se soubesse se tinha ou não recombinação somática do DNA, até chegar a identificação de todos os segmentos gênicos que recombinam (V, D e J), os lugares exatos onde a recombinação acontece, e a regra central que define os requerimentos dos parceiros em rearranjo.  
Logo depois, quando o Tonegawa já tinha se mudado para o MIT em Massachusetts, chegou a descoberta do trancriptional Enhancer no gene da cadeia pesada, o primeiro em células eucariotas, e chegaram as descobertas da diversidade juncional não recombinatorial, constituída pelos nucleotídeos N e os nucleotídeos P.  Que os nucleotídeos N são adicionados pela enzima TdT (terminal transferase) foi descoberto no MIT dois andares acima do lab de Tonegawa, no lab do David Baltimore, outro brilhante cientista ganhador do Nobel pela descoberta da transcriptase reversa.  Em relação aos nucleotídeos P, a última descoberta do Tonegawa relacionada com o rearranjo V(D)J, eles serviram de base para entender que a reação de recombinação passa por um intermediário que tem uma estrutura fechada em si mesma (“hairpin”), a ser aberta durante a fase seguinte da reação.  
Esse prédio pequeno de seis andares do Center for Cancer Research (CCR) do MIT é um remodelado de uma velha fábrica da época dourada da indústria em Cambridge, Massachusetts.  Nesse prédio feio e de tetos baixos (onde eu tive o privilégio de trabalhar no lab do Tonegawa por mais de 7 anos e conheci outros brasileiros como a grande amiga Verônica Coelho), teve a uma hora ou outra laboratórios de cinco ganhadores do Nobel de Fisiologia ou Medicina, o Salvador Luria, o David Baltimore, o Tonegawa, o Phil Sharp e o Bob Horvitz.  Isso sem contar “quase Nobels”, em particular Bob Weinberg.  Jim Watson foi o primeiro estudante do Salva Luria e já conhecemos a história do Jim Watson.  Em 2010 finalmente o CCR mudou para um prédio maravilhoso no outro lado da rua.  Mas dá para fazer ciência de qualidade espetacular num prédio feio, se as pessoas que estão lá dentro fazem que o ambiente seja muito especial.  Não quero ser repetitivo com o tema das catedrais, mas, já pensaram o que é entrar nesse pequeno prédio a trabalhar todos os dias? ...exatamente.
Quais são as conseqüências do paper de 1976 e dos papers que continuaram na trilha aberta por esse paper?  Bom, em primeiro lugar o paper demonstrou que a diversidade de anticorpos tem uma base molecular no rearranjo do DNA dos genes de imunoglobulina.  Essa é a resposta de grande interesse para os imunólogos.  Além disso, o trabalho do Tonegawa nos genes de imunoglobulinas resultou em muitas descobertas essenciais para a Biologia.  Por exemplo, o rearranjo do DNA durante a diferenciação normal de linfócitos altera a visão estável do DNA que era altamente prevalente.  Os trabalhos de RNA loop em 1977 e as primeiras seqüências de DNA que o Tonegawa fez com suas próprias mãos em colaboração com o Wally Gilbert, mostraram o splicing de RNA em genes de mamíferos por primeira vez (o Phil Sharp e o Rich Roberts tinham mostrado splicing pouco antes em adenoviruses e ganharam o Nobel por isso, e o Pierre Chambon veio um pouco depois do Tonegawa com o gene que codifica ovalbumina na galinha, todos os papers publicados em 1977).  Numa frase imperdível, Tonegawa et al escreveram sobre o splicing que acabavam de observar por primeira vez: “One hypothesizes that this precursor [falando do RNA precursor antes do splicing] then loses the additional sequences as the mRNA matures in the nucleus”.  Mas abaixo eles escrevem: “we call such an additional piece of DNA that arises within a gene an intron, (for intragenic region or intracistron)”.  Nada mal como descobertas de aspectos ultra básicos de biologia celular e molecular.  O gene da cadeia leve de imunoglobulina lambda foi o primeiro gene de eucarioto a ser seqüenciado pelo método de Maxam e Gilbert em 1978, já que no primeiro paper de 1977 o Maxam e Gilbert descreveram o método, mas como exemplo apenas seqüenciaram um fragmento de operon lac em bactéria.  E o grupo de Sanger, usando o método do dideoxi, seqüenciou o fago phiX174 como primeiro exemplo, também em 1977.  Já escrevi que o enhancer do gene da cadeia pesada de imunoglobulina foi o primeiro enhancer descrito em célula eucariota.  Antes do paper do Tonegawa em 1983 (e o paper do David Baltimore competindo), enhancers eram coisa de vírus. Outra coisa importante foi a determinação da seqüência de DNA do octâmero onde grudam as E-proteins, já que esse paper descreveu seqüências alvo de fatores de transcrição no DNA.  Tem algum questionamento em relação ao precedente do primeiro rearranjo do DNA em célula somática.  Como aluno de Biologia da USP entre 1978 e 1982 (e do curso chamado Farmacinha na Farmácia e Bioquímica entre 1979 e 1982) ouvi do Professor Crodowaldo Pavan que foi ele quem primeiro descobriu o rearranjo de DNA nos cromossomos politênicos da glândula salivar da mosca Rhyncosciara em 1955, em colaboração com Marta Breuer, lá na USP mesmo.  O paper de Breuer e Pavan na revista Chromosoma descreve isso.  Ele insistiu que, na época, ninguém acreditava na amplificação somática que ele descreveu porque o DNA devia ser estável, dizer que o DNA rearranjava durante o desenvolvimento era violar um código sagrado.  Lembro da frase do Pavan, ou uma aproximação dela: “todo mundo achava que o RNA era malandro, porém o DNA, o DNA tinha que ser perfeitamente direitinho”. Ele se sentia vindicado pelo Tonegawa mas percebia-se também certa frustração pela atenção que o Tonegawa recebia como tendo revolucionado o código sagrado da estabilidade do DNA.  Como estudante de graduação, a palestra do Pavan me levou a velha biblioteca da Biologia da USP, a procurar o PNAS de 1976, abrir aquela revista e a entrar “na catedral” por primeira vez.  
Hoje em dia é quase impossível pensar qualquer questão central em imunologia sem assumir a maneira em que os repertórios de reconhecimento antigênico são gerados.  Pelo trabalho descrevendo o rearranjo nos genes de imunoglobulina Susumu Tonegawa ganhou o Premio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1987.  Sozinho, como mérito a quem iniciou todo o trabalho do rearranjo e fez parte de todas as descobertas que seguiram. É muito pouco provável ganhar o Nobel e mais raro ainda ganha-lo sozinho.  Tonegawa é o primeiro e até hoje o único cientista nascido no Japão em ganhar o Nobel em Fisiologia ou Medicina.  Mas o Tonegawa não é de ficar muito tempo analisando o passado; talvez um dia ele pare e olhe para trás nessa viagem extraordinária, mas que eu saiba esse dia não chegou.  Foi uma das minhas surpresas quando cheguei ao lab dele em 1988, depois de defender minha tese de Doutoramento na Bioquímica da USP (feita em co-orientação com Samuel Goldemberg na Fiocruz).  Como muitas pessoas no Brasil agora em idade de ir acumulando cabelos grisalhos ou perdendo cabelo, eu conheci o Tonegawa em 1986 quando ele veio como um dos professores do primeiro curso Yakult, organizado pelo Antonio Coutinho e localmente ajudado pelo Wilmar Dias da Silva e a Teresa Kipnis.  O Tonegawa não tinha ganho o Nobel ainda, e logo de uma discussão que tivemos na praia sobre a expressão de um hipotético receptor heterodimérico beta-gama na superfície de células T, ele me convidou a trabalhar com ele no MIT.  Quando eu finalmente cheguei ao MIT um ano e meio mais tarde, ele já tinha feito a famosa viagem a Estocolmo a dançar com a rainha da Suécia e trazer a medalha de ouro.  Mas eu fiquei impressionado que o prêmio não tinha mudado ele, e posso dizer depois de muitos anos de convívio que o Tonegawa nunca pensou que fosse melhor que os outros.  Ao contrário, ele agia como se tivesse que se “provar” em cada coisa que fazia.  O Tonegawa prefere ficar nas batalhas de hoje, raramente volta ao passado, falando dos tempos da Basiléia apenas para usar como exemplo de trabalho duro e determinação.  Deixou a imunologia em 1995, meu último ano no grupo dele, e hoje se dedica a entender o mecanismo de aprendizado, ele simplesmente diz que quer entender o que faz a gente esquecer coisas e lembrar coisas.  Enquanto o famoso paper dele faz 35 anos, ele está muito bem de saúde com seus 71.
O paper de 1976 termina com as frases: “The present results, when combined with those of our previous reports, demonstrate that both content and context of immunoglobulin genes are altered during the differentiation of lymphocytes.  Whether such a genetic event is common in other eukaryotic gene sytems remains to be seen”.
Durante a diferenciação dos linfócitos, o conteúdo e o contexto dos genes de imunoglobulina mudam.  Conteúdo e contexto.  Que simpleza, que economia de palavras.  Amém, professor.  Afinal, enquanto estamos lendo o manuscrito ainda não saímos da catedral. 

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8 comentários:

  1. Juan, eu conhecia essa história apenas superficialmente. Foi um enorme prazer ler esse artigo, escrito por alguém que trabalhou com o Tonegawa e participou de perto desses trabalhos. O sentimento de êxtase e reverência foi como se eu estivesse na catedral. Ainda ficarei nela por um bom tempo.

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  2. Lafaille, seu post está simplesmente fantástico - entrelaçando a história científica do criador, da criatura e bastidores.

    Um abraço, André

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  3. Seu Barral, o craque demorou a chegar, mas acaba de entrar em campo...

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  4. Fantástico, Juan!
    Fiquei grudado na tela do computador do começo ao fim do texto.

    Um abraço

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  5. Belíssimo relato Juan.
    Parabéns, João (Viola).

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  6. Fantástico Prof. Juan

    fica mais fácil entender a geração da diversidade de anticorpos com a história contada dessa forma.

    Parabéns,
    Abraço,
    Juliano (ICC/Fiocruz)

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  7. Adorei o texto, Prof. Juan. Os grandes feitos científicos ganham um sabor a mais quanto são contados com um cunho pessoal e apaixonado. Me lembrou muito as aulas de História da Biologia Molecular ministradas pelo Prof. Darcy, no IBCCF, UFRJ. Obrigado!

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  8. Juan, grande amigo:
    Só agora consegui ler esta sua linda história e fiquei emocionada. Também me sinto nesta "catedral", também sem crenças religiosas, com muitas crenças na vida. É realmente genial. Que bom que a ciência também emociona, não é mesmo? Também tive o privilégio de conviver um pouco com Susumu no MIT, lá mesmo no CCR, quando nos conhecemos. Foi certamente uma experiência que me marcou na vida. Completo com mais uma frase do Susumu sobre seu interesse na neurociências, que você mesmo me contou: "I want to understand how the brain works... I want to understand consciousness..." Esta tá difícil, com simplicidade, não? forte abraço, Verônica

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